O bairro é a República, zona central da cidade de São Paulo. Muitas mulheres transexuais se concentram na região, basicamente entre a Rua General Jardim, Rêgo de Freitas e Bento Freitas. Normalmente, elas estão trajadas com roupas curtas e justas, que ostentam partes do corpo consideradas erógenas por nossa sociedade: seios, nádegas e pernas. Elas são objetificadas.
A objetificação está no sentido de estarem ali, mesmo diante do frio e outras possíveis dificuldades, prontas e atraentes; tudo para atender clientes e seus desejos sexuais. Objetificação, em um sentido mais abrangente, significa tratar uma pessoa como uma mercadoria ou objeto, não dando importância à sua personalidade ou dignidade. Se sentirão prazer, se estão satisfeitas com aquela situação. Não importa. O que importa é o prazer satisfeito de quem as compra.
Ao abservá-las percebe-se que enquanto aguardam seus clientes, em sua maioria estão com fones de ouvido, além de utilizarem o celular como ferramenta de trabalho. Observei uma delas em uma conversa pelo celular. “Gato, eu não passo foto por WhatsApp, [aplicativo para envio de mensagens], você precisa vir aqui me ver”. Outra mulher disse que a amiga marca programas por meio do Facebook.
Os clientes normalmente estão de carro. Param ao lado delas e o diálogo se estabelece muito rápido, minando em cerca de um minuto. Se o acordo é consentido entre ambas as partes, a mulher entra no carro e segue para algum local para realizar o programa. Senti necessidade de abordá-las, de saber mais sobre suas vidas. Duas delas decidiram entrar em uma lanchonete e resolvi segui-las. Sentei-me ao lado delas, mas pulei um banco, para não ser invasiva.
Logo, uma delas levantou e se dirigiu ao banheiro. Quando voltou, a distância se quebrou entre nós. Escolheu sentar ao meu lado. Eu já havia cumprimentado sua colega com a cabeça. Ela então perguntou se eu estava bem. Respondi que sim. Fiquei satisfeita, pois vi uma chance de abertura para iniciar meu contato. O garçom as atendeu primeiro. ”O que vocês vão pedir?” A mulher prontamente respondeu: “Eu quero uma coxinha. Tem?”, o garçom acenou de maneira afirmativa. A outra disse: “Eu quero um cheese-salada e uma vitamina de morango”. Imediatamente a primeira interviu: “Nossa gata, tá na larica hein?”, “ Eu tô amiga, tá foda” e começou a rir. Larica é uma gíria utilizada por usuários de maconha. A gíria denomina a sensação de fome produzida pelo uso da erva. Senti-me à vontade para comentar: “Ah, larica é incontrolável, né?”. Você fuma? Ela me perguntou. “Sim, de vez em quando”, respondi. “Ah, eu fumo toda hora, e tenho muita larica menina”.
As duas mulheres me disseram os seus nomes sociais. Para que um transexual seja reconhecido socialmente pelo sexo no qual ele se identifica, é preciso que alguém da área da saúde o certifique assim. Recebendo o aval deste profissional da saúde, ele pode legalmente requerer a alteração de seus documentos de identificação. Não perguntei a elas se já haviam buscado este direito.
A Marina, transexual mais jovem, foi a que sentou-se ao meu lado. Parecia querer conversar. Ela contou ter nascido em Manaus. “Terra boa, mas muito quente”, disse. Estava com um macacão bem curto, com tecido estampado de algodão. Uma sandália alta. Era negra, cabelos curtos, cortados até os ombros. Maquiada. Em seu sorriso – que era fácil e constante – havia a ausência dos dentes molares. Sua pele denunciava seus hormônios masculinos. Havia pelos grossos e um buço com pontos de quem havia depilado e o pelo começava a crescer. Marina tem 20 anos. Está em São Paulo há 4 meses. Perguntei o que achava da cidade e ela respondeu que estava “amando”. “São Paulo ferve, né gata”.
Fernanda tem 27 anos. Branca. Cabelos lisos, castanhos e compridos. Cílios postiços. Trajava um vestido estampado bastante justo e curto, com um palmo distante da cintura. As pernas eram tatuadas e depiladas. Pele lisa, bastante fina. Não havia indícios de barba. Supus que ela fazia tratamento hormonal – prática recorrente nos indivíduos transexuais. Fernanda me chamou atenção pela sua aparência. Talvez, se ela não me dissesse que era uma mulher trans, eu não percebesse esta mudança. Nasceu em Brasília e está em São Paulo há dois anos. Disse que também gosta muito da cidade, porque aqui tem sempre coisas acontecendo. “São Paulo nunca dorme”.
Elas estavam curiosas com a minha figura, também. Era uma curiosidade mútua. Marina me perguntara algumas vezes: “Mas você é de São Paulo, mesmo?”, “Seu olho é bonito”. Naquele contexto, eu era a diferente.
Pudemos aprofundar a conversa depois de uma pergunta que Marina fez à Fernanda em relação ao valor de aluguel de um Flat lá por perto. Fernanda disse que pagava 1700 reais em seu apartamento, no qual dividia com seu marido. “Meu marido vende anabolizante”, ela disse.“Por isso eu sou rica” e, complementou: “E eu que sou formada em Direito, sou puta!”.
Ela se formou em Brasília, por vontade do pai. “Sou filha de político. Meu pai e minha mãe exercem cargos políticos em Brasília”. Ela contou que nunca gostou da profissão. E que logo depois de terminar a faculdade, se assumiu transexual. Os pais cortaram relações. E ela escolheu vir pra São Paulo e “esquecer que eles existem”. É a mãe que não aceita, enfatiza. “Ela não deixa meu pai falar comigo. De vez em quando, ele me escreve um e-mail”. Acrescenta que os pais viveram na época da Ditadura e foram presos. Eram de esquerda. Perguntei o que ela achava do fato de sua mãe não aceitar sua transexualidade. Sempre “joguei na cara” dela que ela era uma falsa militante de esquerda. Fernanda conta que sempre se identificou como homossexual. Aos 17 anos, fazia show em Brasília, como dragqueen. Perguntei se ela gostava do trabalho atual. “Foi o que me restou. Mas é dinheiro fácil também, viu, gata. E eu gosto. Mas é passageiro, disso eu tenho certeza”.
Fernanda disse ganhar por dia 200 reais. Transmitindo naturalidade, Marina afirmou ganhar mais, porque roubava. “Você rouba? Como?”. Ela respondeu: “Eu sou filha da puta, sou vagabunda mesmo. Quando estou (fez um gesto com as mãos, querendo supor beijo ou sexo oral) fazendo isso com os homens, eu abro a carteira deles e roubo: Eu não tô nem ai.”
Entrei na questão da falta de segurança da atividade, da vulnerabilidade. Perguntei se elas não tinham medo de entrar em um lugar desconhecido com uma pessoa desconhecida. Fernanda disse que tinha medo, mas que não tinha outro jeito. Marina concordou e contou sem pudores um ocorrido da semana anterior. “Na semana passada, um homem queria que eu ‘desse pra ele’ e eu não quis. Ele veio com uma máquina de dar choque pra cima de mim. Eu o furei. Sorte dele que fugiu, porque se não eu tinha furado ele todinho. Eu ando com um ‘punhalzinho’ na bolsa”. Ela aproveitou para contar outra violência: “Minha amiga de Manaus marcou um programa pelo Facebook e o cara furou ela todinha e ainda comeu ela sem camisinha”.
Fernanda disse que mora atualmente em um prédio de uma federação espírita e não pode mais atender em seu apartamento. Ela tem um site e marca várias programas por ele: “Trabalho com cliente fixo. Gosto mais. Tem cliente que me come toda semana. E tem uns que me pagam 500 reais só por uma hora de jantar”.
Perguntei qual o perfil de clientes que elas mais atendiam. “Homens mais velhos”. Questionei a média da idade. “Entre 45 e 50 anos, quase todos heterossexuais casados”.
Nesta instância eu já havia me apresentado. Fernanda chamou Marina pra se levantar: “Vamos? Tá na hora!”. Eu perguntei se elas não poderiam ficar mais. Elas demonstraram pressa. “Tchau, Marcela! Você é linda, mulher”. Marina acrescentou: “Eu tô sempre aqui, passe mais vezes”. Dei um beijo no rosto de cada uma e um abraço. Agradeci a conversa e elas foram embora, para mais um dia de trabalho nas ruas.
*O texto é fruto de um trabalho de observação de Marcela, estudante de Ciências Sociais. A estrutura foi adaptada e reduzida para publicação no BlogSouBi e os nomes das entrevistadas substituídos para preservar suas identidades
Apesar de elas parecem felizes com a vida… eu acho muito triste uma pessoa ter que se sujeitar a essa ultima opção porque as pessoas não sabem lidar com a diversidade.. aqui no bairro onde eu moro tem duas transexuais que são empregadas domesticas…não quero dizer que seja mais digno longe de mim… mas eu fico orgulhosa de vê-las passar lá… me da um gostinho de alegria, de que uma pequena parcela quase que invisível ainda tem coração e capacidade pra enxergar além das aparências!
Sou homossexual, mas ainda bem que sou cisgenero. Nossa que sofrimento! É de fato muito triste msm.
Esse cenário não é tão incomum… e se replica não somente em SP, em todo país… Agora, discordo do discurso ” a sociedade impõe” é muito confortável buscar abrigo nessa frase quando são escolhas próprias que definem sua carreira, seus objetivos, suas prioridades. Pra muitos trabalhar é quase uma virtude e não o que deveria ser uma necessidade. Ok… “são vitimas” do formato e da decadência do nosso país…. tenho lá minhas duvidas, transsexuais existem em todo tipo de sociedade seja ela poderosa ou não. Eu sempre estudei em escola pública, já comprei livro usado pra estudar, ja peguei onibus pra trabalhar, ja levei marmita pra economizar… enfim. É sustentar a escolha que fez, caso contrário bora arregaçar as mangas e não desacreditar nunca!!!!
Só acho que não dá pra comparar pobreza com transexualidade…
A prostituição em si não é só para as mulheres CIS… aqui a história é sobre as Trans, uma condição bem mais marcante!
É nitido que não há muitas trans no mercado de trabalho formal… E nada se compara ao preconceito… ele existe está ai na casa de todo mundo! Estar na prostituição não é questão de não correr atrás! É questão de sobrevivência…não é o caso de todas né…mas a maioria é!
Concordo parcialmente… Em verdade não fiz o comparativo Renda X Transexualidade, até porque para umas das transexuais filha de políticos (citadas como exemplo) não parece que a insuficiência de renda é um problema para ela. inclusive a sua transexualidade nada impediria de exercer com plenitude sua formação acadêmica em Direito. Parece-me que a grande questão que cerca o transexualismo não está relacionado a oportunidade de emprego, ou a capacidade de gerar renda.. mas sim o quão aparentemente são abandonadas de afeto, de carinho e estima pela família e amigos.
A minha opinião é a mesma que a sua Thaísa! Acho muito triste tb.
Sou trans e digo, maioria que se vê ai são travestis, a maioria das transexuais que conheço não buscam a prostituição. Seria um assunto para quase um post sobre o ponto de vista, então prefiro ser breve.
Alice,
Você tem razão.
Aliás todos que comentaram tem razão em tudo.
Tive o azar de não ser homossexual.
Pensei que fosse possível uma realização transexual.
A sociedade tem horror, pavor de pessoas que trocam seu sexo.
No caso do transexualismo o problema não é a ignorância.
É um total menosprezo, pavor, horror.
Eu tinha 7 (sete) amigos de mais de 40 anos de amizade, cada um deles com até 2 (dois) Mestrados e até 2 (dois) Doutorados (alguns até com pós-Ph.D.).
Tinha.
Aliás, no imaginário de qualquer ser vivendi em nosso planeta a pessoa transexual é uma pessoa homossexual gay ou lésbica que depois de muito tempo resolveu fazer uma cirurgia para mudar de sexo.
E é impossível que a pessoa que já tem a ideia acima pré-estabelecida (preconcebida) mude sua opinião.
Moro em um prédio com 73 vizinhos.
Antes, eu era consultada para vários assuntos administrativos, econômicos e de liderança. Até para assuntos políticos (pois trabalhava no Senado Federal).
Hoje, ninguém fala comigo, só os coitados dos porteiros.
As vizinhas até me cumprimentam, mas não conversam comigo (quanto mais me chamar para alguma outra coisa).
Seus maridos só falam oi bem longe de mim (porque já souberam pelas esposas o que sou).
É como se tivesse LEPRA (que me desculpem as pessoas que a tem, mas a analogia serve ao momento).
Okay, é como se tivesse H1N1 e estivesse constantemente espirrando. E todos soubessem que tenho H1N1.
Até uma de minhas sexólogas, professora de Medicina, com 3 Mestrados, sempre se manteve distante de mim e foi supergrosseira ao examinar-me após eu ter feito a mudança de sexo (ora, ela é professora de ginecologia).
Depois que fiz a mudança de sexo, comecei a sentir uma aversão muito latente da maioria dos médicos e médicas em relação a mim.
No Senado Federal, após muitas e reiteradas explicações a meu respeito, laudos que até grampeei em murais, mesmo sendo Virgem (não é o signo) desde que nasci, o Bullying começou, começou, começou, continuou, continuou e não parou até que me aposentei.
Ser transexual é ser a ESCÓRIA de todos os seres vivos do planeta Terra, pois outros animais são mais bem tratados do que uma pessoa trans. Vide cachorros, gatos, golfinhos, baleias Jubarte (uau, elas tem uma proteção que invejo), tartarugas (proteção e projetos Tamar para elas) etc.
Me lembro de viajar às vezes para Goiânia, de ônibus (muito melhor do que ir de carro, pois as ruas são totalmente sem lógica, sem nexo), e durante as 3h de ida e 3h de volta ficava chorando, olhando pela janela do ônibus e desejando ser aquela vaquinha pastando lá em cima do morro, querendo ser uma árvore e até uma pedra bem grande.
Sim, desejaria ser qualquer coisa, menos eu mesma.
Qualquer coisa era melhor, até não existir (tentei 4 suicídios e falhei, não sei o porquê até hoje – de ter falhado).
Sabem o que é aguentar o menosprezo e o bullying das pessoas durante 7 (sete) anos?
Sabem o que é não ter absolutamente ninguém?
A família (pais advogados, irmão farmacêutico e bioquímicos, cunhada engenheira florestal) me odeia.
Ninguém jamais liga (literalmente e figurativamente) para mim.
O telefone só toca 3 vezes ao mês. É a LBV pedindo contribuição ou alguma creche.
Oh, sim, mesmo sabendo a respeito da aversão, da irritação velada a meu respeito eu me sinto bem somente comigo mesma e contribuo com as igrejas e creches.
Meu problema não é financeiro, como jamais foi desde que nasci.
Sim, não tenho respeito pelo dinheiro nem pelo poder (ele é efêmero).
Dinheiro nunca trouxe felicidade, pelo menos para mim.
Só estou viva por aqui porque quero saber um pouco mais a respeito do Mundo antes de partir.
Já li mais de 4 mil livros durante a minha vida. Ouvi mais de 5 mil CD’s e DVD’s…
Quando me sentir possuidora de mais conhecimento, de mais certeza em relação às pessoas (normalmente egoístas e más; há pouquíssimas pessoas boas) e ao que virá no futuro (tenho as piores premissas a esse respeito), partirei.
Ei, não tenho pena alguma de mim.
Mereci o castigo de Deus? Sei lá.
Mereci ter vivido 45 anos de idade tentando ser alguém que não era (tinha medo dos meus pais – eram brutos – e da sociedade que só me via como menino e homem) e sem saber se seria possível ser o que era, um dia?
Não sei.
Não ligo.
Também quero dizer que as pessoas mais humildes de educação e cultura, as pessoas mais humildes financeiramente, também, não tem a AVERSÃO e o MENOSPREZO que as pessoas mais educadas e cultas em relação a mim, pelo menos.
Ser transexual é a morte social.
Aliás, duplamente no meu caso.
Primeiro porque pertencia à classe A+ (“homem” rico financeiramente, educacionalmente e culturalmente).
Depois eu comecei a usar roupas femininas, após meu diagnóstico de trans. em 2007, e aí caí vertiginosamente na pirâmide da sociedade patriarcal, como “mulher”.
E aí minha situação, que já não era boa, aliás era ruim, se tornou péssima, ultrapéssima: mudei de sexo e passei a usar (na época) roupas femininas.
Sim, passo por mulher para as pessoas que não me conhecem. Mas e daí?
Não sou mulher porque geneticamente sou XY.
Se quiserem ver algumas fotos minhas basta que digitem procurando alguém no Facebook:
Gabriela Ribeiro+UnB (sou a mais velhinha que existir nas imagens).
Mas acho que no Face só há uma Gabriela Ribeiro+UnB+Brasília.
Não uso mais roupas femininas nem masculina.
Só uso short, camisa pólo, tênis e boné todos os dias.
Não saio à noite há 4 (sim, quatro) anos.
Sair para quê? Para me sentar sozinha em um restaurante?
Peço comida delivery para comer e ficar sozinha em casa. É mais saudável (mentalmente dizendo).
Saio um dia e fico em casa dois dias.
Saio somente para andar (corpo velho precisa de mais exercício e ginástica do que os corpos mais novos).
Acho que já falei (escrevi) demais.
Obrigada.
É isso mesmo, amiga. Também sou trans e sei exatamente pelo que você passou e passa… Tenha força, fé e esperança. Bjs.