As primeiras dificuldades das pessoas transexuais costumam começar dentro de suas próprias casas, na infância e adolescência. Alguns são expulsos. Outros apanham e são proibidos de sair. Por conta da ignorância dos pais, muitas crianças trans sofrem muito. “Ainda vivemos em um país preconceituoso onde as pessoas sequer entendem com clareza o que significa ser trans”, afirma Victor Patutti Godoy, autor do livro “A proteção jurídica da criança e do adolescente transgênero”.
Em entrevista exclusiva a Voz da Diversidade, Godoy revela pesquisas descritas em seu livro e discorre sobre a necessidade dos direitos das crianças e adolescentes transexuais.
Quais são os problemas enfrentados por crianças trans no Brasil?
Sabemos que a população trans como um todo sofre com o descaso, a discriminação e a violência de maneira acentuada em nosso país.
Quando falamos especificamente sobre crianças e adolescentes, o problema se intensifica diante das limitações existentes à autonomia desses jovens por ainda não terem atingido a maioridade civil. Com isso, a submissão a qualquer tratamento, desde atendimentos psicológicos até intervenções hormonais, depende, em regra, da autorização dos pais ou responsáveis, o que acaba por dificultar a atenção integral à sua saúde muitas vezes. Ainda vivemos em um país extremamente preconceituoso onde as pessoas sequer entendem com clareza o que significa ser trans e, por isso, é comum que as primeiras dificuldades sejam criadas dentro da própria casa do indivíduo, comprometendo todo o seu bem-estar e desenvolvimento sadio de acordo com sua identidade de gênero.
Outro problema que merece destaque é a absoluta ausência de qualquer lei federal em defesa dos direitos trans, o que compromete a eficácia e a segurança do pouco que já foi conquistado. A garantia de direitos à saúde, ao nome e outros está prevista apenas em normas infralegais, como Portarias do Ministério da Saúde e Resoluções do Conselho Federal de Medicina. Assim, sua alteração ou revogação não exige o trâmite relativo às leis no Congresso Nacional, podendo ocorrer por uma simples “canetada” a depender do cenário político de determinado momento histórico-social. Ressalto que sequer havia qualquer previsão a respeito de crianças e adolescentes nessas normas até a recente Resolução nº 2.265 do Conselho Federal de Medicina, em vigor desde 2020, que previu pela primeira vez, e ainda de maneira tímida e conservadora, procedimentos como o bloqueio de puberdade e a transição hormonal para menores de 18 anos.
Temos algum bom exemplo de tratamento de crianças trans em outros países? Quais seriam eles e como isso é tratado?
Em meu livro, analiso diversos casos de crianças trans que garantiram seus direitos no Canadá, Estados Unidos e Argentina, países que são referência no pioneirismo do reconhecimento de direitos para jovens trans.
Na Argentina, por exemplo, foi editada a Lei nº 26.743 em 2012, conhecida como Lei de Identidade de Gênero, que prevê expressamente o direito de menores de 18 anos à mudança de nome e à realização de procedimentos de saúde. Essa lei, considerada bastante inovadora até os dias de hoje, serviu de base, inclusive, para que diversos adolescentes conseguissem realizar intervenções cirúrgicas para adequação de seu corpo à sua autoidentificação de gênero.
Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos, enquanto Estados como a Califórnia buscam proibir a recusa a cirurgias em crianças e adolescentes trans, outros mais conservadores, como o Alabama, criminalizam qualquer assistência médica a essa população, fazendo com que famílias tenham que procurar outros Estados para garantirem os direitos de seus filhos e filhas.
Percebemos, no cenário mundial, essa angustiante dualidade. O avanço das conquistas da comunidade LGBTQIAP+, inclusive com a aprovação de importantes leis nesse sentido, continua enfrentando a oposição de forças políticas conservadoras crescentes, gerando incerteza acerca da garantia desses direitos em um futuro próximo.
Em seu livro, você cita as pesquisas de Jean Piaget sobre o desenvolvimento cognitivo das crianças. Pode destacá-las, por favor?
Ainda que o psicólogo Jean Piaget não tenha pesquisado especificamente sobre transgêneres, suas lições sobre o desenvolvimento cognitivo de crianças e adolescentes podem ser utilizadas como base para a presente discussão.
Em síntese, é possível extrair de seu livro “A Epistemologia Genética” que, durante o chamado período das operações pré-operatórias (2 a 7 anos), a criança começa a desenvolver noções de signos, significados e significantes, como a reprodução dos papéis sociais de gênero, embora ainda não se possa afirmar que compreende integralmente suas implicações.
A partir da fase das operações concretas (8 anos), a criança inicia o desenvolvimento de seu raciocínio, sendo que, no período das operações formais (a partir dos 11 ou 12 anos), aprimora a lógica das proposições, passando a compreender hipóteses e suas consequências, além de pensamentos reversíveis, processo cuja maturação ocorre por volta dos 14 anos.
Essas fases de aprendizagem, com algumas adaptações, são aceitas até hoje pelos estudiosos sobre o assunto.
Com base nessa breve exposição, conclui-se que a criança, aos 7 anos, já entende seu gênero e se comporta socialmente de acordo com o que dele se espera. Apenas com 14 anos, porém, terá discernimento o suficiente para compreender sua autoconstrução de gênero, bem como suas consequências pessoais e sociais.
Foucault discorre sobre a influência que o meio social exerce sobre as crianças. Como isso tem influenciado negativamente as crianças trans?
Apesar das indicações de idades em que ocorrem determinadas aprendizagens pelas crianças e adolescentes, tais números não devem ser aceitos de forma absoluta, tendo em vista que existem inúmeros fatores socioculturais que influenciam diretamente nas concepções de gênero e nas durações das fases apontadas por Piaget. Por isso, impõe-se uma análise interdisciplinar individualizada de cada caso que permita identificar as peculiaridades da realidade de cada indivíduo.
Nesse sentido, o filósofo Michel Foucault, em sua trilogia “História da Sexualidade”, defende que a sexualidade deve ser entendida como um conceito histórico cuja construção se dá pela relação social entre saberes, discursos e poder. De maneira sucinta, isso quer dizer que as noções sociais acerca da sexualidade apenas reproduzem os pensamentos dominantes de determinada época. Assim, o que é considerado “normal” ou “aceitável” no que diz respeito à sexualidade e identidade de gênero é resultado da primazia às relações cisgêneras, heterossexuais e monogâmicas com objetivo de reprodução, repudiando-se tudo aquilo que não se encaixa neste molde.
Essa influência que o meio social exerce sobre as crianças se origina de todas as partes: a partir das relações familiares, da vizinhança em que cresceu, dos ensinamentos religiosos que recebeu, da mídia à qual é exposta, da escola que frequenta, das referências culturais que possui. Todo esse complexo social cria uma teia que irá moldar a concepção do indivíduo sobre sexualidade e gênero, o que pode ocorrer de forma positiva ou não.
Como já mencionado, não é incomum que o primeiro contato com a discriminação venha do próprio âmbito familiar da criança, resultado das construções estruturais seculares preconceituosas às quais seus pais foram submetidos e que reproduzem até hoje.
Embora seja indiscutível a importância da proteção da religiosidade de todos, o que inclusive é garantido pela Constituição Federal, também é perceptível, com tristeza, que muitas vezes ambientes religiosos reforçam preconceitos à comunidade LGBTQIAP+, o que contribui para a perpetuação dessa forma de violência. A mídia também possui vital relevância nesse processo, principalmente após a popularização da internet, já que a propagação de discursos de ódio atinge um número cada vez maior de pessoas, dificultando o avanço dessa luta social e impondo maior sofrimento às crianças e adolescentes que não se identificam com sua identidade de gênero.
Qual é a Proposta de Lei de Identidade de Gênero apresentada em seu livro?
A partir de um estudo interdisciplinar acerca da proteção de crianças e adolescentes transgêneros, sobretudo nas áreas do Direito, Psicologia e Sociologia, apresento uma proposta de Projeto de Lei de Identidade de Gênero com o objetivo de dar um ponta pé inicial na solução dessa omissão legislativa, ampliando a segurança de direitos mínimos à população trans.
A proposta tem como inspiração a Lei de Identidade de Gênero argentina e o atualmente arquivado Projeto de Lei nº 5.002/13, de autoria dos Deputados Federais Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Erika Kokay (PT-DF), que representou uma tentativa frustrada de aprovação de uma lei nesse sentido no Brasil.
A finalidade principal da proposta é garantir, com força de lei, o respeito básico ao direito ao respeito, à saúde e ao nome das pessoas transgêneras. Embora não seja possível prever minuciosamente todas as possíveis realidades sociais em uma lei, proponho uma normativa que assegure a qualquer interessado o amplo, integral e gratuito acesso a atendimentos de saúde, desde atendimentos psicológicos a intervenções cirúrgicas (estas apenas para maiores de 18 anos), mediante apoio de uma equipe multidisciplinar composta por psiquiatra, endocrinologista, ginecologista, urologista, cirurgião plástico, pediatra, psicólogo e assistente social. Também proponho, com base no estudo interdisciplinar mencionado, a redução e a flexibilidade de algumas idades mínimas exigidas para determinados atendimentos.
O projeto também visa a simplificar o procedimento de retificação do registro civil (alteração do nome, gênero e foto) de transgêneres em cartório, possibilitando que seja realizado de forma gratuita e sem a necessidade de contratação de um advogado.
Além disso, diante das peculiaridades que envolvem a situação das crianças e dos adolescentes, existe uma especial atenção e preocupação também com a garantia de seus direitos, inclusive com a previsão de alternativas para que eles sejam assegurados mesmo diante da discordância ou obstáculos criados pelos pais ou responsáveis.
Há muitas discussões ainda sobre crianças trans. A sociedade diz que ainda não têm discernimento para tomar a decisão de tomar hormônios a partir dos 16, por exemplo. Há ainda alguns exemplos trazidos por famosos, como a filha da Angelina Jolie e Brad Pitt que antes se identificava como menino e depois passou a se identificar como menina. Qual seria o momento ideal para iniciar as dosagens hormonais e qual a melhor maneira de realizar esse procedimento?
Essa é uma das principais e mais difíceis questões que envolvem crianças e adolescentes trans. Defendo, a princípio, que qualquer discussão sobre o assunto deve possuir um caráter multidisciplinar, por se tratar de um assunto extremamente complexo e que envolve diversas áreas do conhecimento, como o Direito, Medicina, Psicologia, Sociologia e inúmeras outras.
Ademais, defendo que não deve existir uma fixação absoluta de idades mínimas para cada procedimento, pois existem incontáveis fatores que podem alterar a recomendação em cada caso. Fatores de ordem biológica pessoal de cada indivíduo, particularidades psicológicas e até influências do meio social podem representar a possibilidade de uma intervenção mais precoce ou a recomendação de que se aguarde mais para a tomada das decisões.
Por isso, o acompanhamento cuidadoso da equipe interdisciplinar é indispensável em todos os casos, pois apenas uma análise individualizada por profissionais capacitados em diversas áreas do conhecimento é capaz de indicar a melhor maneira de agir em relação a cada criança ou adolescente.
Tendo isso em vista, porém, os estudos realizados permitem que se faça uma sugestão de idades a partir das quais, em tese, o indivíduo já possui o discernimento necessário para decidir o melhor para si. Nesse sentido, também deve ser levada em consideração a reversibilidade, ou não, do procedimento almejado, devendo haver maior aceitabilidade para que menores de 18 anos possam realizar aquilo que possa ser revertido posteriormente, caso assim desejem.
Estudos da área da saúde indicam que o bloqueio hormonal é imensamente mais eficaz quando realizado antes do início da puberdade, pois impede que a pessoa desenvolva características físicas do sexo biológico com o qual não se identifica. Tratando-se de procedimento absolutamente reversível, bastando que cesse o bloqueio para que o corpo volte a produzir naturalmente seus hormônios, a medida deve ser permitida a partir dos 8 anos de idade.
Uma vez que, como já exposto, o adolescente de 14 anos já possui raciocínio lógico-dedutivo e discernimento suficientes para compreender as consequências de sua autoconcepção de gênero, parece razoável que, a partir dessa idade, possa iniciar a chamada hormonioterapia cruzada, o que também é posteriormente reversível caso queira.
Tratando-se de intervenções cirúrgicas, por outro lado, recomenda-se que sejam permitidas apenas a partir dos 18 anos, diante da irreversibilidade das medidas, o que exige maior discernimento da pessoa, evitando futuros arrependimentos que não possam ser revertidos.
Ressalto novamente, todavia, que essas idades são meras estimativas extraídas de minha pesquisa, não devendo ser consideradas absolutas e permitindo relativizações, para mais ou para menos, a depender da realidade biológica, psicológica e social de cada caso concreto, a ser minuciosamente analisada pela equipe interdisciplinar competente.
Qual papel a educação deve assumir em relação a identidade de gênero?
Embora se defenda a urgente necessidade de aprovação de uma lei que garanta os direitos da população trans de todas as idades, sabemos que isso não seria suficiente para extinguir todo o preconceito enraizado em nossa sociedade. Por isso, o respeito e a conscientização devem ser promovidos em todas as esferas sociais, desde a família até as organizações políticas que regem o país.
Nessa seara, a Educação assume papel primordial nesse processo, de modo que se revelam inadmissíveis as recentes tentativas legislativas de proibição de discussões sobre gênero e sexualidade nas escolas, já consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.
Não se defende, por óbvio, que as crianças devam ser forçadas a serem transgêneres, mas tão somente que sejam ensinadas desde cedo sobre respeito à diversidade, de si mesmas e dos próximos. Ações educacionais nesse sentido devem ser incentivadas para que nossas crianças e adolescentes cresçam em um ambiente saudável e possam viver sua sexualidade e sua identidade de gênero de forma livre e sem preconceitos.
A existência de crianças e adolescentes trans é uma realidade social inquestionável, e fechar os olhos para essa questão apenas reforça e perpetua a discriminação que sofrem. Não falar sobre o assunto ou proibir sua vivência não fará com que a pessoa deixe de ser quem é, mas apenas resultará em um indivíduo frustrado e infeliz por não poder viver de forma livre. E é, ou deveria ser, interesse de toda a sociedade que todos possam viver sua dignidade sem qualquer limitação.
Victor Godoy é Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Ele é pesquisador e escreve diversos artigos acadêmicos, principalmente nas áreas de Direito LGBTQIAP+ e Direito das Famílias.
Muito esclarecedor nossa exposto de forma simples e de fácil compreensão. Gostei e aprendi bastante num assunto que sou completamente leiga.obrigado.
Freud mesmo sendo lembrado em nossos dias, mas ele teve um certo “conflito” de natureza heteronormativa, supostamente por não compreender quando o filho seja mais próximo do pai e não da mãe! Já que a Sexualidade Hetera, é digamos presumida quando o filho é mais próximo da mãe e a filha em relação ao pai! Só que pode “sinalizar” a identificação de gênero ou homossexualidade. Lembrando sempre que ao se tratar de desconforto de gênero, “investigar” quanto a memória fetal: podendo ter sido desejado com gênero oposto ao que foi gerado! Uma conversa com a mãe já ajudaria e observar o nome que recebeu, como por exemplos: Aurélio (a), Fernando (a)! Mas o marco para adolescência sempre será bom sinalizador: a motivação ao orgasmo ou ejaculação (expontâneo, primeira vez de sua ocorrência)! E nunca esquecer que atração começa no cérebro e envolve personalidade e fisico, podendo ocorrer homossexualidade entre cisgeneros e inclusive é uma via de mão dupla: se um cisgenero nos é atrativo, podemos ser atrativos a ele! Travestir ou ser transexual deve ser opção pessoal pelo traje feminino ou viver sensações vividas pelo gênero oposto, como outrora, justificou a Roberta Close, de fazer cirurgia para ter o prazer vaginal!